Acordei e li. Todo. Sem parar.

"Desço para a casa principal e sento-me na beira da varanda, de costas para a janela do meu quarto. Posso sentir na pele a chegada da noite. Ainda está claro no resto do sítio, mas o ar que respiro é noturno. Nas árvores que vejo à luz do dia, o movimento das folhas já se revezou, e é um movimento noturno; como são noturnos certos cheiros e ruídos; como há bichos noturnos e flores que não se abrem de dia, como há pensamentos tão claros que só à noite se percebem. A menina da cabeleira crespa é noturna, e quando me dou conta ela está trançando os meus cabelos. Depois, sentada a meu lado, e põe-se a pedalar no vão da varanda.

















Reparo que seus olhos são muito redondos, como numa surpresa permanente.

















Apóia a pequena mão na minha coxa, e seus dedos são curtos como os de uma pata. Traz o fone nos ouvidos e canta "hmmmmmmmm", uma canção sem letra. Para alcançar as notas mais agudas, crispa a mão e chega a me machucar. E quando começo a entender a melodia, ela retira a mão da minha coxa e aperta o stop. Desaparece tão de repente que quase me sinto roubado."


Chico Buarque, Estorvo.

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